Tradução do latim de António Fazenda
1. O Evangelho do Apóstolo S. João, que se chama Evangelho segundo S. João, terminou hoje com a narração das aparições que o Senhor, depois da ressurreição, fez aos discípulos. Interpelou, pois, ao Apóstolo Pedro, àquele presunçoso renegado, o Senhor, quando, tornado à vida depois de vencer a morte, se pôs a falar com ele e lhe dizia: Simão, filho de João — era assim que se chamava Pedro —, tu tens-me amor? (Jo 21, 15). Respondia ele o que em verdade tinha em seu coração. Se Pedro respondia o que tinha em seu coração, porque é que lhe fazia perguntas o Senhor que via os corações? Porque a verdade é que até o próprio Pedro se admirava e sofria certo incômodo em ser perguntado por Aquele de quem sabia que era conhecido.
A primeira pergunta foi: Tu tens-Me amor? Resposta: Senhor, tu sabes que Te tenho amor. E segunda vez a pergunta: Tens-Me amor? — Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que Te tenho amor. E ainda terceira vez a pergunta. Entristeceu-se Pedro, (Jo 21, 17) Porque te entristeces, Pedro? Por declarares três vezes o teu amor? Esqueceste o teu tríplice temor? Deixa que te interrogue o Senhor; é o médico que te interroga; interroga-te para te sarar. Não te enfades nem te aborreças. Espera. Cumpre-se o número do amor para destruir o número da negação.
2. Cada vez, contudo, cada vez, isto é, cada uma das três vezes que pergunta, o Senhor Jesus, quando Pedro lhe declara que O ama, encomenda-lhe os seus cordeiros e diz: Apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas (Jo 21, 15, 16, 17); como se dissesse: Que retribuição é essa que tu Me dás com a declaração do teu amor? Prova-Me o teu amor no serviço das minhas ovelhas. Que Me dás tu com o teu amor, quando Eu é que te permiti que Me pudesses amar? Contudo o teu amor para comigo, tens onde possas mostrá-lo, tens onde pô-lo em prática: apascenta os meus cordeiros.
Ora, como houvessem de ser apascentados os cordeiros do Senhor, ovelhas compradas por tão alto preço, com que força de amor se houvessem de apascentar, revelou-o no que segue. Efetivamente, depois que Pedro, cumprido o justo número das suas três respostas, professou que era amigo do Senhor e se teve por incumbido das suas ovelhas, ouviu falar do martírio que havia de sofrer. Aqui lhe mostrou o Senhor que aqueles que se incumbem das suas ovelhas as hão-de amar de tal modo que estejam dispostos a morrer por elas. É o que diz o mesmo S. João na sua epístola: «Assim como Cristo sacrificou a sua vida por nós, assim devemos pelos nossos irmãos sacrificar as nossas» (1 Jo 3, 16).
3. Ora pois, respondera Pedro ao Senhor com não pouca presunção e soberba: «Arriscarei a minha vida por Ti» (Jo 13, 37). Ainda não tinha recebido forças para cumprir a promessa; agora, para a poder cumprir, recebe uma enchente de caridade. Por isso à pergunta Pedro, tu tens-Me amor? também responde: Tenho, porque tal coisa só a pode cumprir a caridade.
Ora então, Pedro! Quando negaste, que temeste? Tudo aquilo que te metia medo era morrer. Está vivo falando contigo Aquele que viste morto. Doravante não temas a morte; foi vencida por Aquele que tu temias morresse. Esteve pendurado da cruz, foi pregado com cravos, rendeu o espírito, foi atravessado pela lança e posto no sepulcro. Com medo disto é que tu negaste, o que temeste foi sofrer isto, e por medo da morte negaste a vida. Toma agora sentido: Quando temeste a morte, então morreste. Realmente, morreu com a negação e ressuscitou com o pranto.
Por que é que depois lhe diz: Segue-Me? Porque já sabia que estava preparado. Pois se estais lembrados, antes porque estão lembrados os que leram — e os que o leram e já se esqueceram bom é que o recordem, ou que tomem conhecimento os que ainda não leram —, Pedro tinha dito: Seguir-Te-ei para onde quer que fores (Mt 8, 19; Lc 9, 57). E o Senhor observara: Não Me podes seguir agora, seguir-Me-ás depois (Jo 13, 36). Agora, disse, não podes. Prometes, mas vejo as tuas forças, penetro com meus olhos o teu coração e informo o doente do seu verdadeiro estado: Agora não Me podes seguir. Mas como este diagnóstico do médico não é desesperado, por isso ajunta e diz: Seguir-Me-ás depois. Hás-de sarar e então Me seguirás. Agora, como vê o que passa no coração dele e vê o dom de amor que lhe meteu na alma, diz-lhe: Segue-Me. Eu, não há dúvida que tinha dito: Não podes agora; mas Eu mesmo digo: Agora segue-Me.
4. Surge aqui uma dificuldade que se não deve passar de largo. Quando o Senhor disse a Pedro: Segue-Me, deitou Pedro os olhos para trás ao discípulo que Jesus amava, isto é, ao próprio S. João que escreveu o Evangelho, e pergunta ao Senhor: Senhor, e este? Sei que o amas. Como é então que eu Te hei-de seguir e não Te há-de seguir ele? Responde o Senhor: Quero que ele fique assim até que Eu venha: tu segue-Me (Jo 21, 22). Ora o mesmo Evangelista, aquele mesmo que escreveu a frase que a ele se refere «assim quero que ele fique até que Eu venha», prosseguindo acrescentou no Evangelho estas palavras suas em que diz que por causa deste dito correra fama entre os irmãos que aquele discípulo não havia de morrer. E para desfazer esta opinião acrescentou: Não disse, porém, Jesus que ele não havia de morrer; mas só disse: quero que ele assim fique até que Eu venha, tu segue-Me. Ora esta opinião, segundo a qual S. João não havia de morrer, desfê-la o próprio S. João com as palavras que aditou; para que tal coisa se não acreditasse, diz: O Senhor não disse tal coisa; o que disse foi isto. Mas a razão por que o Senhor disse aquilo, S. João não a declarou, mas deixou-nos a nós o cuidado de bater à porta, para ver se porventura no-la abrirão.
5. E conforme a graça que o Senhor se digna fazer-me, por quanto me parece perceber — outros melhores entenderão melhor —, julgo que esta questão se pode resolver de duas maneiras: ou o Senhor falou do martírio de Pedro ou do Evangelho de João.
Pelo que se refere ao martírio, «segue-Me» quereria dizer: padece por Mim, padece o que Eu padeci; pois foi crucificado Cristo e também Pedro foi crucificado e padeceu os cravos e padeceu tormentos. João, porém, nada disto experimentou. Quero que ele assim fique significa que ele faleça sem ferida e sem suplício e que espere. Tu segue-Me: padece o que Eu padeci, derramei o meu sangue por ti, derrama o teu sangue por Mim. Este é o primeiro modo como se pode expor a frase: Assim quero que ele fique até que Eu venha, tu segue-Me. Não quero que ele padeça, padece tu.
Mas penso que também se pode entender com referência ao Evangelho de S. João. Pedro escreveu do Senhor como escreveram outros também. Mas o que eles escreveram ocupa-se mais da humildade1 do Senhor. Mas realmente o Senhor Jesus Cristo é Deus e homem. Homem que quer dizer? Alma e corpo. Que é então Cristo? Verbo, alma e corpo. Mas que espécie de alma, porque também os animais têm suas almas? Verbo, alma racional2 e corpo: Cristo é tudo isto. Ora da divindade de Cristo há alguma coisa nas epístolas de S. Pedro, mas no Evangelho de S. João ela é que predomina. No princípio era o Verbo, disse ele. Transpõe as nuvens, transcende os astros, transcende os Anjos, transcende toda a criatura, chega ao Verbo pelo qual tudo foi feito. «No princípio era o Verbo, o qual estava no princípio junto de Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele.» Quem seria capaz de o contemplar, de o meditar, de o perceber como convém e de o exprimir competentemente? Isto só se poderá entender bem quando Cristo vier3 . «Quero que ele fique assim até que Eu venha.» Expliquei-vos isto conforme pude. Ele em vossos corações pode fazê-lo melhor.4